A inquisição no Ceará – “In nomine patris et filis, et spiritus…”

Anda vagabundo pelas freguezias da Granja, Serra dos Cocos, e Vila Viçoza hum homem cego com coroa aberta e intitulando-se sacerdote“. A descrição era implacável, nas comunicações entre comissários e familiares do Santo Ofício aos inquisidores. Noutro documento, as ousadias do senhor desconhecido que perambulou lesando incautos pelas veredas da serra cearense da Ibiapaba. O tal vinha “confessando, baptizando, benzendo e exorcizando“, “dizia missa e confessava“.

Se a Inquisição era por demais inclemente, havia os que davam -motivos-. Como modesto jesuíta, estava ali o “padre Francisco de Faria“, orientador das almas e de gestos. Só embuste. A coroa aberta na cabeça, roupas adequadas, a cegueira e as rugas de seus 70 anos eram o disfarce perfeito. Como se só quisesse distribuir bondades e curas. Porém, omitia seu nome verdadeiro, Félix José da Silva Gaia. Era um farsante.

Interrogado, mão direita sobre os Santos Evangelhos, confessou até ser casado com Francisca Dias Xavier, em Quebrabó (hoje Cabrobró, Pernambuco), pelas bandas do rio São Francisco. Uma das testemunhas ouvidas, um capitão da freguesia de Amontada, ouvira até falar de um filho que o acompanhava. O falso sacerdote já estava há algum tempo em atividade.

Já havia percorrido localidades como Varge da Vaga (hoje região dos Inhamuns), Vila Viçosa Real (hoje Viçosa do Ceará), Granja, Serra dos Cocos (hoje Canindé)… onde os trocados fossem generosos. Quase sempre cobrou por graças e benzeduras. Chegou a vender pedacinhos de fita a 80 réis dizendo ser de Nossa Senhora da Penha. Benzeu cavalos e carrancas, curava feitiços e mordidas de cobras. Tirava proveito da fé e alguma tragédia alheia. Antes do golpe, chegou a pedir esmolas.

Segundo seu processo, o de número 3972 no Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Félix Gaia foi facilmente achado na região. Poucos talvez tivessem aquela aparência, um velho “seco de corpo e sego“ & os escrivães costumavam alterar grafias de algumas palavras até num mesmo processo. A autuação aconteceu em Viçosa no dia 3 de julho de 1787, na povoação chamada São Pedro. De lá, foi levado para a Villa de Sobral. O então visitador Bernardino Vieira Lemos, que tinha a função fiscalizadora da dita fé praticada nas villas e freguesias da capitania, inteirou-se do caso por documentos que lhe chegaram em Olinda.

No depoimento, Félix disse ter feito o que fez “regido da tentação do demônio por se ver cego, pobre e necessitado“. O nome Francisco Faria era de um primo que se formara religioso. Aproveitou-se. Para curar cabeças cheias de ilusões de feitiços ou o que aparecesse. Repetiu até como benzia: “In nomine patris, et filis, et spiritus sancti…“. Os autos inquisitoriais não trazem a sentença. Félix foi levado em 10 de março de 1788 para Olinda, para ser trancafiado num aljube. Era o cárcere dos padres e mesmo que ele nunca tenha sido um. De lá, não há notícia se saiu.

Acompanhe matéria publicada no Jornal O Povo de 23 de maio de 2010.
Jaqueline Aragão Cordeiro

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