Precisa-se do Ceará – Gilberto Freyre

Discurso de Gilberto Freyre, acontecido durante a conferência “Precisa-se do Ceará”, do Teatro José de Alencar, em Fortaleza, no ano de 1944, e depois Publicado no jornal “Unitário”, da cidade de Fortaleza, em 28 de agosto de 1944.

“Creio que foi principalmente a Universidade de Columbia, cosmopolita como nenhuma e cheia de provincianos do mundo inteiro, que me distanciou para sempre do puro cosmopolitismo, depois de me ter curado do bairrismo também puro. Mas não para me tornar um chauvinista ou nacionalista intolerante, e sim um adepto da combinação de duas tendências que só combinadas me parecem psicológica e culturalmente criadoras ou fecundas: provincianismo e universalismo; regionalismo e cosmopolitismo; continentalismo e oceanismo. O contacto com centenas de estudantes das origens mais diversas – não só de quase toda a América, como da Europa, da Ásia, da África, da Austrália, de arquipélagos e de ilhas de quase todos os mares – ensinou-me, sendo eu próprio ainda estudante, que o melhor tipo humano é formado por aqueles indivíduos que, experimentados e mesmo à vontade no contacto com o mundo e com as metrópoles, não arrenegam das suas raízes provincianas nem escondem as cicatrizes regionais para ostentar uma superioridade que estaria em não guardar e super-homem nem no corpo nem na alma traço nenhum de formação rural ou do passado local.

Creio que esta é também a lição do Ceará ao Brasil; a lição constante dos cearenses aos demais brasileiros. Nenhum brasileiro é mais cosmopolita. As anedotas chegaram a exagerar esse pendor do cearense; a caricatura chegou a fazer dele um cigano ou judeu brasileiro; a lenda chega a salpicar de cearenses ricos ou a caminho de riqueza, não só Nova York e Londres, como o próprio Oriente; há quem jure que o Dr. Goebbels é cearense; mas, em compensação, há quem suponha o mesmo do general Montgomery; e é tradição que do Ceará largou-se uma vez para a Inglaterra um grupo meio louco de rapazes – simples Tarzans de fundo de quintal brasileiro – empregados a borda, cearenses sem dinheiro, que ali teriam se revelado maravilhosos em trabalhos de circo.

Aliás, são dos dias comuns as maravilhas de circo que os jangadeiros cearenses praticam nas águas dos “verdes mares bravios” de sua terra natal, fazendo da rotina da pesca uma constante aventura. Nem devemos nos esquecer do fato de que, durante os grandes dias da campanha da Abolição, a jangada cearense foi o trampolim de que muito negro do Brasil feudal pôde dar o salto da escravidão para a liberdade; e o jangadeiro, o mágico que fez desaparecer centenas de escravos das senzalas de Pernambuco e de Alagoas e surgir centenas de homens livres nas praias do Ceará. De modo que o espírito de iniciativa, de luta e de aventura do cearense não está ligado apenas a triunfos nas armas, na guerra do Paraguai, na colonização da Amazônia, no comércio, na indústria, nas letras, na arte da administração; está também ligado á historia da liberdade no Brasil.

Por outro lado brasileiro nenhum é mais do seu torrão, da sua terra, da sua província do que o cearense. Não é só a cabeça chata e a face triangular que lhe anunciam a origem onde quer que se encontre; conserva gestos, modos de falar, maneiras de andar, de ouvir, de olhar, de rir que são igualmente muito suas, sendo, ao mesmo tempo, muito do Brasil.

A unidade brasileira muito deve ao cearense que sendo um dos brasileiros mais fortemente marcados na carne e na alma por combinações étnicas em que predominam os sangues português e ameríndio e entrou talvez o cigano e por cicatrizes de lutas brasileiríssimas com o clima e com o solo áspero, com a seca e com a fome, é também o que, depois dos Bandeirantes, mais se tem espalhado, de norte ao sul do Brasil, pelas cidades grandes e pelos ermos paludosos e terras virgens de civilização, cumprindo um destino supra-estadual ou supra-regional de unificador do Brasil – regiões – e de domesticar ou civilizador de brasis – indígenas ainda agrestes – que eleva sua historia dos limites provincianos ou das fronteiras estaduais para torná-la, como outrora a dos Bandeirantes e a dos Jesuítas, história dinamicamente brasileira e história criadora em dimensões continentais.

A história do Ceará pode, como a dos outros Estados, ser quietamente escrita sob critério estadual ou regional. A historia do cearense, porém, de tal modo se vem confundindo com a historia da autocolonização do Brasil e da unificação brasileira que só deve ser traçada sob o critério mais dinamicamente transregional do que seja capaz um historiador social ou um sociólogo especializado no estudo histórico da miscigenação na América chamada portuguesa e do desenvolvimento do Brasil em povo ou cultura extra-européia, mestiça, americana. É uma historia que ainda nem sequer se esboçou sob tal critério sociológico, a do cearense. Entretanto, já nos faz falta e conhecimento exato da atividade extra-estadual do cearense; o estudo especializado de sua influência nas áreas brasileiras que tem fecundado com seu sangue e com suas especialidades de cultura por excelência dinâmica, ativista e ascética.

Uma cultura de fabricante de redes mais para o sono indispensável e nômade que para o luxo do repouso gostoso, sedentário e contemplativo; de fabricante antes de alpercatas duras, ascéticas e franciscanas, próprias para as caminhadas ásperas e longas, que de chinelos macios, burgueses, de couro mole, em que os pés se deliciam nos ócios caseiros e nos prazeres da sedentariedade, de especialista no preparo de uma carne seca – a do Ceara – que é outra expressão do seu espírito ascético e do seu desdém pelos requintes de mesa; de criador de valores tão antagônicos aos valores baianos – exceção feita da renda – que são talvez estes – o cearense e o baiano – os dois grupos sub-nacionais que melhor se completam com suas diferenças para darem harmonia e complexidade ao todo brasileiro, o cearense concorrendo para esta harmonia com seu escetismo angulosamente magro, romântico, ativista, andejo, inquieto, empreendedor, franciscano, fraternal – o baiano com sua voluntariosidade gorda, sedentária, lentamente criadora de valores profundos e estáveis, fecundamente maternal, ou antes, matriarcal: uma maternidade que tem feito da Baía não só “a Virginia do Brasil”, a mãe dos grandes estadistas, dos grandes diplomatas, dos grandes contemporizadores, dos grandes presidentes de gabinete, de poetas, de escritores, de oradores, de gramáticos, de latinistas, de classistas, como a mãe de insurretos magníficos, de bravos advogados, de brasileiros oprimidos, de lutadores iguais aos cearenses na coragem, na firmeza e na resistência aos que abusam do poder. É que parece haver uma zona de acuidade política e de sensibilidade moral em que a vocação maternal da Baía se confunde com a vocação fraternal do Ceará na mesma ira em que são capazes de se extremar baianos e cearenses, e com eles, brasileiros de outras regiões quando mais profundamente feridos naquele conjunto de liberdade e de direitos que todos consideramos essenciais à dignidade americana, à dignidade humana.

Há anos, quando se falava em regionalismo no Brasil, muito brasileiro sincero e bom sentia arrepiar-lhe um medo: o do separatismo. O medo da descentralização que significasse desintegração. O medo de que o baiano, o gaúcho, o pernambucano, o paulista que insistisse na sua condição ou tradição regional não fosse ortodoxamente brasileiro. Vamos hoje vencendo esse pavor, justo diante daquele estadualismo ou seccionalismo que á primeira Republica deixou desenvolver-se entre nós e contra o qual soube colocar-se a sagacidade política do Sr. Getulio Vargas, mas não diante do regionalismo ou provincianismo independente de pruridos prussianos de dominação ou catalães, de separação. É que não há motivo nenhum para temer-se o provincianismo, muito menos o regionalismo, autêntico. Este é, por natureza orgânico: um regionalismo inseparável do inter-regionalismo. Um regionalismo que tem na interdependência das regiões sua principal ou essencial condição de vida. Um regionalismo em que a espontaneidade de vida e de cultura que se deseje para a gente de uma região, em vez de um ideal de suficiência, importa no máximo de interdependência entre as regiões que formam uma nação; e no caso das nações da América, que constituem a base ou o nervo de um sistema continental caracterizado pela constância de aspiração democrática.

É dentro desse critério de regionalismo que o que há de caracteristicamente cearense no Ceará me parece interessar de modo profundo ao desenvolvimento da cultura brasileira, da cultura americana, da nova cultura democrática para que caminhamos e em que o mundo inteiro se integrará ao, ganha a guerra atual, ao que parece, já no fim, não se perder a paz. Pois toda vivacidade do espírito local, da energia regional, de tradição provinciana corresponde a reservas de valores humanos de que o mundo inteiro vai necessitar em sua provável fase nova de maior interdependência e de maior cooperação não só econômica, em particular, como cultural, em geral. O mundo a reorganizar-se, dentro de condições de maior interdependência e de mais inteligente aproveitamento de recursos da natureza e de valores de culturas, creio que não vai só interessar-se no que o Brasil tem de materialmente mais valioso em suas várias regiões, mas também em sua variedade de energia, de talento e de aptidão humana em seus cearenses do saber largamente jurídico de Clovis Beviláqua, do espírito de luta e da capacidade de organização de Juraci Magalhães e de Juarez Távora, do desassombro de Jeová Mota e de Austragésilo de Athayde e não apenas nas redes, nas rendas e nas peles do Ceará; em seus baianos do talento médico de Juliano Moreira, do poder poético de Jorge Amado e da visão artística de Prescilliano e não apenas nos charutos, nos quitutes e no cacau da Bahia em seus paraenses da capacidade científica de Afrânio do Amaral e não apenas nas madeiras e nas tartarugas do Pará; em seus paulistas do espírito de iniciativa dos Bandeirantes e do gênio de organização social de José Bonifácio e não apenas no café de São Paulo; em seus mineiros da força e do arrojo de escultor chamado “Aleijadinho”, do poder inventivo de Santos Dumont e da profundidade lírica de Carlos Drummond de Andrade e não apenas na manteiga e nos queijos de Minas; em seus pernambucanos da energia de Dom Vital, de Joaquim Nabuco, de Oliveira Lima e da compreensão poética do mundo que distingue o grande poeta que é Manuel Bandeira e não apenas nos doces de goiaba e nas fibras de Pernambuco; em seus gaúchos da intrepidez de Osório e de Anita Garibaldi e não apenas nas casas do Rio Grande”.

Jaqueline Aragão Cordeiro

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