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Contos de Leonardo Mota – “Quem escreveu a patente de Lampião”

Jaqueline Aragão Cordeiro, 16 de setembro de 201320 de julho de 2017

Foi nos primeiros dias do ano passado e quando me internei nos sertões de Pernambuco.

Não sei como, naquela calçada de hotel, em Caruaru a palestra começou a girar em torno do Padre Cícero, de Juazeiro. Falou-se na extrema capacidade de sedução do quase nonagenário reverendo. Na ignorância eterna em que ele finge estar de ofensas jornalístyicas que lhe são irrogadas. No empenho de obsequiar a todo hóspede ilustre de sua terra. Nos seus recursos de conversador matreiro, não abordando política com adversários, nem religião com incréus. Na sua eleição de Deputado Federal, sem dar à Câmara a confiança de tomar posse da cadeira para que fôra colhido. No seu culto pela virtude da Castidade, contra o que inimigos acérrimos jamais articularam qualquer imputação. Na sua megalomania, crendo-se autorizado a escrever cartas ao Kaiser, sugerindo-lhe a rendição da Alemanha, ou a dar conselhos a presidentes do Brasil, quanto ao modo por que se devem conduzir no governo… Éramos poucos, mas tudo gente esfarinhada no “caso” de Juazeiro.

Alguém lembrou que, de uma feita, ouvira um romeiro falar ao taumaturgo juazeirense:
– Meu Padrim, eu queria que o Sr. me dissesse se, este ano, o sol incriza. Lhe pergunto porque eu estou com uma filha pra casar, mas ela diz que, se o sol incrizar este ano, ela não se casa… O Padre, que já havia lido as folhinhas do ano, disse que a moça podia se casar, pois naquele ano não haveria eclipse do sol…
– Certos milagres que o Padre Cícero faz eu também faço! ajuntou outro da roda. E exemplificou:
– Chega um romeiro e lhe diz:
– Meu Padrim, vim tomar sua bença e lhe peço também que me diga onde é que eu posso encontrar um burro meu que se sumiu.
– Donde você é? indaga o Padre.
– Eu sou de Barbalha.
– E o seu burro donde era?
– Comprei ele perto do Crato.
– Pois, procure de Barbalha para o Crato que você o encontra.

Com efeito, o burro, saudoso dos velhos pastos, para lá se escapulira. Isso era de fácil previsão que pra onde era pasteiro pra aí é que o burro foge. Mas ninguém tira da cabeça do fanático que o Padre Cícero fez o milagre de adivinhar onde o animal estava. Ora, assim também, até eu sou milagroso…

E um terceiro companheiro de prosa rememora:
– Uma vez, o Padre Cícero estava lendo uns jornais, à noite, à luz de uma estearina. Começou a cochilar e a chama da vela atingiu-se a manga da batina, queimando-lhe bastante o braço. No outro dia, ao saberem do acidente, os romeiros fizeram sérias penitências, porque acreditavam que o Padre Cícero, como Jesus Cristo, estava a sofrer pelos pecados da humanidade…
– Você conhece as peripécias da permanência de Lampião em Juazeiro, quando foi incorporado às tropas legalistas em perseguição à Coluna Prestes?
– interpelou-me o velho agrônomo Pedro de Albuquerque Uchoa que, àquele tempo, exercia na Meca sertaneja do Ceará as funções do cargo de Inspetor Agrícola.
– Conheço. Tanto que as descrevo em prosa e verso num de meus livros.
– Mas aposto que não sabe quem escreveu a nomeação de Virgolino para, no posto de Capitão, combater os revoltosos!
– Não, isso não sei. E ignorava até que do fato tivesse havido documento escrito.
– Pois, foi este seu criado que lhe está falando quem escreveu a patente de Lampião.
– É possível? Diga, diga, por favor, como foi que isso se deu!

E o agrônomo Uchoa não se fez de rogado:
– Como você sabe, porque várias vezes lá me viu, residi oito anos em Juazeiro. Quando o Dr. Floro Bartolomeu foi incumbido, pelo Governo da República, de dar caça aos revoltosos no Nordeste, agravaram-se sobremodo os padecimentos cardíacos do referido deputado. Tenho lido que foi no quase delíquio de sua razão que o Dr. Floro se lembrou dos préstimos guerreiros de Lampião e seu bando, atraindo-os ao quartel-general de Juazeiro. De fato, não acredito que Virgolino tivesse o arrojo de ir a uma cidade então excepcionalmente guarnecida de soldados, sem que um chamamento amistoso a tanto o autorizasse. O que sei também, entretanto, é que o Dr. Floro já se achava no Rio, onde foi morrer com honras de General, quando o Padre Cícero, uma noite, me mandou chamar à sua presença, para eu lavrar a patente de Lampião. Pedi que ele ditasse e pensei que estivesse apenas a servir de secretário, ou coisa que o valha. Supus que quem assinasse o documento comprometedor fosse ele mesmo, Padre Cícero, mas este, quando acabou de ditar, me disse:
– Agora, assine! O Floro, que é Deputado Federal, não está aqui e eu não exerço nenhum cargo. Você, porém, como Inspetor Agrícola, é uma autoridade federal…
Achei de bem não discutir e não tive dúvidas: firmei meu jamegão…

Eu estava radiante com a interessantíssima informação inédita, assim inesperadamente. O agrônomo Pedro Uchoa sempre foi pessoa respeitável, de conceito, e a sua sensacional revelação se impunha como fidedigna. Não se deteve, todavia, o valioso informante e acrescentou:
– Quem me fôra chamar em casa, a mandado do Padre Cícero, fôra o célebre bandido Sabino Gomes, acompanhado de Antônio Ferreira, irmão e também cangaceiro de Lampião. Em presença deles é que eu achara prudente não hesitar em assinar a patente.
E com um risonho significado:
– Naquela hora eu assinava até a demissão do Artur Berbardes, quanto mais a nomeação de Virgolino…

Cumprida minha missão, os dois bandoleiros, que me haviam ido buscar, prontificaram-se a fazer-me companhia no regresso à minha residência. Eram quase onze horas da noite. Eu tinha na cabeça um mundo de apreensões a respeito daquilo a que, moralmente constrangido, acabara de emprestar meu nome. A caminho de casa, enchi-me de coragem e fiz ver a Sabino e Antônio Ferreira que aquela nomeação por mim assinada não tinha valor algum, porquanto eu não passava de simples funcionário subalterno do Ministério da Agricultura. Mas o mano de Lampião resmungou secamente que, se o Padre dissera que era eu quem devia assinar a patente, era porque era eu mesmo. De novo me calei, conformado com os altos poderes de que a sorte naquela noite me investia… E a patente foi ter ao embornal de Virgolino, que estava pernoitando no sobradinho em que morava seu contraparente, o cantador João Mendes de Oliveira.
– Uchoa, e o Padre Cícero não lhe disse nada a respeito de Lampião?
– Disse. Ele me disse que Virgolino era um menino bom mas doido, que Virgolino queria brigar ao lado do Governo, que Virgolino jurara por Nossa Senhora das Dores em como daquele dia por diante havia de ser um homem, um cidadão e não um cangaceiro, e patati e patatá…
– E que é que você dizia na patente?
– Como já expliquei, o Padre foi quem ditou. Não guardei cópia, não, mas me lembro de que a nomeação era feita “em nome do Governo da República dos Estados Unidos do Brasil” e servia também de salvo-conduto, uma vez que reconhecia ao “Senhor Capitão Virgolino Ferreira da Silva” o direito de se locomover livremente, transpondo as fronteiras de qualquer Estado, com os “patriotas” que arregimentasse.

E o Sr. Pedro Uchoa pôs remate às suas declarações:
– O Dr. Otacílio de Macedo, médico no Crato, que fôra a Juazeiro especialmente para entrevistar Lampião em nome da “Gazeta do Cariri”, perguntou a ele:
– Capitão, o Sr., que já tem tanto dinheiro, por que não abandona essa vida perigosa, por que não vai pros sertões de Goiás ou Mato Grosso gozar por lá a fortuna que arranjou?
Sabem o que ele respondeu?
– O Sr., estando bem numa vida, o Sr. larga ela? Assim sou eu!

certo, meus amigos, é que Lampião e sua cabroeira passearam à vontade pelas ruas de Juazeiro, tiraram retrato, beberam, dançaram, foram visitados pelos romeiros do Padre, municiaram-se fartamente e trocaram seus rifles velhos por esplêndidas carabinas e fuzis do Exército, último modelo, tudo novinho da silva… Mas tinha bastado uma palavrinha do Padre e Lampião nunca mais seria gente. Não faltou quem se oferecesse para unhá-lo. O sargento cearense José Antônio até chorava, de raiva…

Houve um silêncio na roda. Não havia em torno quem se não sentisse indignado. Eu dizia mentalmente os versos do poeta popular José Adão:
Com o regime atual
Crime é só ser revoltoso!
Tudo mais é tolerado,
Honrado, honesto e honroso…
Desde o tempo bernardista,
Lampião é legalista,
Deixou de ser criminoso.
Se o cangaço não contasse
Com a proteção de Juazeiro,
Que vale por dez Canudos
Do velho Antônio Conselheiro,
A polícia o extinguiria
E em pouco tempo estaria
Tranquilo o Nordeste inteiro.

Fonte: No tempo de Lampião, Leonardo Mota
Jaqueline Aragão Cordeiro

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