Também houve denúncia formal à Inquisição contra judeus nas plagas sertanejas do Ceará Grande. Na ribeira do Jaguaribe, o médico José Balthazar Auger, italiano de Turim, morador da então villa do Aracathy e devoto frequentador da matriz de Nossa Senhora de Russas (ainda pertencente àquela vila), denunciou um tal Gaspar Roiz Reis Calçado. Delatou que o homem, também residente ali, fazia “coisas escandalosas contra a Santa Fé Cathólica indicativas de judaísmo“.
Gaspar já seria conhecido na freguesia de lá por ironizar, debochar, ser indiferente ou até xingar e execrar alguns ritos e cultos católicos. “Tido, havido e reputado como judeu e cristão novo“. Uma das acusações descreveu que, certa vez, o denunciado afirmou que “Maria Santíssima não podia parir e ficar virgem“. Ou, numa Semana Santa, apontou que “a imagem do senhor Jesus amarrado a coluna (da igreja) era hum macacão“.
O médico apresentou a denúncia no dia 21 de novembro de 1758, ao comissário do Santo Ofício Antonio Alves. Os comissários eram, ao lado dos familiares, os principais representantes da Inquisição nos locais de morada. Eram os olhos e ouvidos da Igreja naqueles anos. Balthazar foi a Recife para oficializar a queixa. Dissera que não era nada de inimizade, mas “desencargo de consciência e temor a Deus“. Tudo aqui ainda era atrelado a Pernambuco, o governo e a Igreja.
Aracati, àquela época, era a vila mais próspera da capitania do Ceará Grande. Era nosso principal ponto comercial, com oficinas de charque e negócios em couro curtido. Os judeus foram o principal povo a sofrer a perseguição dos tribunais eclesiais, também nos rincões nordestinos – para onde vieram, escurraçados da Península Ibérica (Portugal e Espanha) pela Inquisição.
Ainda das feitas atribuídas a Gaspar, o italiano disse que ele costumava ir à igreja “e com grandes risadas escarnecia (zombava) da santa imagem“ e que “as cerimônias da Semana Santa eram macaquice“. Num dos muitos atritos que teria tido com vários da vila, foi contado por Balthazar que Gaspar afirmou: “tanto fazia ouvir missa ou não porque não enchia a barriga“. Disse até que a igreja do Aracati não servia para nada que não fosse fazer necessidades fisiológicas nela.
Mesmo que o médico tenha negado inimizades, havia, sim, uma rixa intestina com o judeu Gaspar. No próprio relato feito ao comissário, o italiano listou uma vizinhança toda que, segundo ele, poderia testemunhar o que acabara de contar. Do mestre caldeireiro do curtume e sua mulher ao tenente, também o tabelião público, o capitão e outros casais.
Todos referenciados para o comissário como probos e cristãos velhos, fidedignos e moradores do Aracathy de Jaguaribe. A Igreja exigia dessas formalidades e reputações. Um sargento-mor também foi acrescido à lista de testemunhas.
O POVO encontrou a denúncia do médico contra o judeu de Aracati num dos cadernos do promotor, o de número 121. Estava arquivado no microfilme 1.444 na Torre do Tombo, em Lisboa. Os cadernos eram as anotações prévias das denúncias – que poderiam ou não seguir como processos.
Pesquisadores consultados pelo O POVO apontaram que a maioria dos registros referentes ao Ceará está no caderno 328. Com ocorrências a partir da segunda metade do século XVIII, quando a colonização da capitania começou a ganhar impulso.
Até ali, Gaspar era só um denunciado ao Santo Ofício, num andamento semelhante ao do Poder Judiciário atual. Na pesquisa com o acervo digitalizado, a partir do nome e da localidade, não houve confirmação se o caso virou processo. A apuração feita pelo comissário não dá informações também sobre a procedência de Gaspar Roiz, se era ou não nascido no Brasil.
Jaqueline Aragão Cordeiro