A varíola foi trazida para Fortaleza por passageiros de duas embarcações oriundas do Pará. Ao constatar que a doença já atingia 19 pessoas na cidade, o inspetor de saúde pública, João da Rocha Moreira, determinou que os variolosos fossem “sequestrados e levados para o Lazareto da Lagoa-Funda, distante uma légua d’esta cidade“, onde já se encontravam isolados os tripulantes dos navios. Essas medidas, recomendadas pelos partidários da teoria contagionista, evitaram a disseminação da varíola pela cidade naquele momento.
Nas províncias vizinhas o quadro era bem diverso: a epidemia se alastrava. O presidente José Júlio, preocupado com o perigo iminente a rondar o Ceará, renovou as recomendações para vacinação e revacinação e para o emprego de outros meios preventivos. Solicitou tubos e lâminas de lympha vaccínica ao governo, à Europa e aos Estados Unidos, que foram enviados aos médicos comissionados para o tratamento dos migrantes.
No entanto a população resistia à vacinação, supondo ser esta antes a causa do que o prevenção da doença, e a maior parte dos indigentes usava de todos os meios para impedir ou frustrar a imunização. Diante da situação, o governo recomendou às câmaras municipais da província que obrigassem a vacinação até sob pena de suspensão de rações, e que no caso de manifestar-se a varíola, isolassem completamente as pessoas atacadas, estabelecendo cordões sanitários e construíssem a sotavento das cidades, vilas e povoações, em lugares arejados e a conveniente distância, espaçosos lazaretos, onde deveriam ser recolhidas as pessoas infectadas.
As práticas urbanas, fundamentadas nas teorias médicas, não foram suficientes para barrar a epidemia de varíola que atingia as províncias vizinhas, e, com tantas fronteiras, era difícil impedir a entrada da doença no Ceará. A despeito das providências tomadas pelos governantes, a varíola chegava pelo mar, como a que veio da Paraíba com os passageiros do vapor Purus, e por terra, trazida pelos ‘retirantes’ fugidos de Mossoró, no Rio Grande do Norte, para a cidade de Aracati e, posteriormente, para Fortaleza. A vacinação foi ampliada e os variolosos, sequestrados e isolados. O presidente oferecia “a gratificação de 2$000 a quem conduzisse ao lazareto um varioloso”. Com o aumento do número de doentes e da mortandade, foi necessário organizar “companhias de carregadores de enfermos e cadáveres”, e os doentes foram proibidos de transitar pelas ruas e praças da cidade.
A epidemia proliferou rapidamente em Fortaleza. Em agosto de 1877 morreram duas pessoas e em setembro, 62; em outubro, o número de mortos por varíola na capital já alcançava 481. Até novembro, todos esses óbitos foram registrados entre os isolados do lazareto da Lagoa-Funda, que então mantinha internados 1.884 variolosos. Para atender ao crescente número de infectados este lazareto foi ampliado e construíram-se mais dois, um na Boa Vista e outro em São Sebastião, nos Arronches,14 com capacidade para receber seis mil enfermos.
Em relatório, o presidente José Júlio de Albuquerque Barros reflete sobre a dificuldade de evitar o contágio e teme o efeito devastador da epidemia, que desde março de 1877 vinha vitimando a população, já fragilizada pelo longo período de estiagem: “Desde as primeiras manifestações é tão assombroso o caráter e o desenvolvimento da contagião que nullifica todas as providencias que em outros tempos e lugares produziriam seguros e benéficos resultados”. Apesar de todas as medidas adotadas, a administração não conseguiu impedir o progresso da varíola, e a doença estendeu-se a todas as classes sociais, vitimando até mesmo a esposa do presidente.
A mortalidade pela varíola continuou aumentando durante todo o ano de 1878. Em novembro, o número de vítimas fatais atingia a cifra de 9.844 e em dezembro, 14.491. Para se ter ideia das dificuldades sanitárias da época, só no dia 10 de dezembro de 1878 faleceram 1.004 pessoas, e “os cadáveres de mais de 200 ficaram insepultos e pela manhã foram encontrados meio comidos pelos cães e pelos urubus, pois não houve tempo para enterrá-los”
O obituário em Fortaleza, no ano de 1878, elevou-se a 57.780 mortos. Durante a década de 1870, antes dessa grande seca, a mortalidade anual em Fortaleza variara entre 651 (1870) e 803 (1876). No ano de 1879, afinal, a epidemia de varíola foi se dissipando e a mortalidade, caindo: 134 óbitos em janeiro, 176 em fevereiro e 107 em março.
A calamidade foi notícia no New York Herald, que enviou a Fortaleza “um representante de visu a estudar o theatro de tantos horrores”. O governo inglês solicitou ao médico Guilherme Studart um relatório “sobre a peste negra, que devorava o Ceará”. A epidemia também foi matéria do periódico londrino Medical Times and Gazette, em 1879, com o título ‘Small-pox in Brazil’.
O historiador Guilherme Studart (barão de Studart), na época médico recém-formado pela Faculdade de Medicina da Bahia (1877) e testemunha da tragédia, criticou a ação do governo geral, por considerar que este “nada ou pouco fez pela extinção da varíola”. Contabilizando os altos custos da seca para o Ceará, relaciona o desaparecimento total da indústria criadora, principal riqueza local; a ruína de todas as fortunas particulares; 180 mil mortos, cabendo a Fortaleza 67.267 e 125 mil expatriados. Para Studart, durante essa longa e pavorosa seca o povo cearense foi “vitima da inclemência da natureza, vitima da própria imprevidência, vitima das desorientações e erros dos administradores, vitima das depredações e ganância dos desalmados as dezenas, não Cearenses, que nenhum se apresentou rico depois da calamidade …”
Depois dessa terrível mortandade, a população sobrevivente imunizou-se, de certa forma. Mas a varíola voltou a se manifestar na seca de 1900. Por essa época o farmacêutico Rodolpho Theóphilo montou um vacinogênio particular, que produzia vacina de qualidade, e organizou a Liga de Vacinação do Ceará. Foi inestimável sua contribuição para extinção da varíola no estado, e, desde 1905, são raríssimos os casos de varíola detectados em Fortaleza.
Fonte: Scielo
Jaqueline Aragão Cordeiro