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A inquisição no Ceará – Os pecados de todos os tempos

Jaqueline Aragão Cordeiro, 16 de janeiro de 2020

Para o historiador Antonio Otaviano Vieira Jr, as pesquisas sobre a Inquisição alargam o horizonte para além da visão dualista do “bem contra o mal“. Nesta entrevista, ele retoma a intolerância e as condenações à luz do século XXI.

A Inquisição portuguesa dos séculos XVI a XIX está mais próxima do que se imagina. Não em sua forma de tribunais ou fogueiras. É o seu espírito de intolerância que ainda ronda. “A base da Inquisição era o medo do diferente: algo que encontramos ainda hoje nos movimentos separatistas, nos ataques homofóbicos, nas brigas entre torcidas de futebol, nas piadas racistas, nos linchamentos públicos“, relaciona, nesta entrevista por e-mail, o historiador Antonio Otaviano Vieira Jr.

Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Pará, Otaviano muda o foco do lugar comum ao pesquisar A Inquisição e o Sertão (Edições Demócrito Rocha). Para o estudioso, deve-se ir além da visão dualista do “bem contra o mal“, de crucificação pura e simples da Igreja ou dos romances de Umberto Eco.

“Estudar a Inquisição e sua presença em terras cearenses é ter acesso a novas possibilidades de análise sobre o período colonial cearense“, aponta. Na condução de sua pesquisa sobre o tema, Otaviano vai tecendo ligações entre os tempos. “O que a documentação sobre a Inquisição está nos ensinando é a forma de pensar, de imaginar o mundo e as tensões sociais e econômicas que muitas vezes marcavam os cotidianos dos séculos XVI a XIX do Império lusitano, incluindo o Ceará“, indica. (Colaboraram Cláudio Ribeiro e Demitri Túlio)

O POVO – Acusados de bruxaria queimados vivos em fogueiras, a organização de tribunais religiosos para o julgamento de crimes contra os dogmas católicos, os autos-de-fé se convertendo em espetáculo para a cidade. O que o senhor lê de toda essa história? Qual a sua versão para a Inquisição?

Antonio Otaviano Vieira Jr. – Os trabalhos acadêmicos sobre Inquisição ajudaram a ter uma visão menos dualista, “o bem contra o mal“. Ou seja, não pensar a Igreja como um berço de “crueldades“ que queimava pessoas por prazer e sadismo. A Inquisição deve ser pensada para além dos romances do Umberto Eco e dos filmes com atores famosos. Não estou defendendo as ações inquisitoriais, mas chamando atenção que a base da Inquisição era a intolerância, o medo do diferente: algo que encontramos ainda hoje nos movimentos separatistas, nos ataques homofóbicos, nas brigas entre torcidas de futebol, nas piadas racistas, nos linchamentos públicos (que nos lembra os autos-de-fé)… Enfim, leio a Inquisição como mais um momento que marca a incapacidade e o medo das pessoas em conviverem com a diferença, momento onde o diferente é pensado como inferior, pecador e por isso deve se expurgado. Temos muito que apreender com os estudos sobre a Inquisição, pois o passado é um ótimo caminho para o presente se revisitar.

OP – A Inquisição ficou intocada por muitos anos, como bem lembra o historiador Capistrano de Abreu em prefácio para o livro Primeira Visitação do Santo Officio (de 1935). Quando se começou a mexer nesse arquivo silencioso da Igreja e como se deu essa abertura?

Otaviano Jr. – Não acho que a Inquisição tenha ficado “intocada“ por muitos anos; já em 1852, (ou seja, 31 anos após o fim do Santo Ofício), Alexandre Herculano escrevia um estudo clássico sobre o funcionamento da Inquisição em Portugal. Mas, o que marcou durante muitos anos esses estudos foi o foco sobre os processos inquisitoriais e sobre a organização administrativa do Santo Ofício. Por outro lado, no Brasil, os estudos inquisitoriais foram instigados inicialmente para estudar os cristãos-novos. Hoje ampliamos nossos estudos não só em relação às fontes documentais, como também temáticas variadas estão sendo analisadas. O que a documentação sobre a Inquisição está nos ensinando é a forma de pensar, de imaginar o mundo e as tensões sociais e econômicas que muitas vezes marcavam os cotidianos dos séculos XVI a XIX do Império lusitano, incluindo o Ceará.

OP – O Tribunal do Santo Ofício perdurou por 285 anos, de 1536 a 1821. Que balanço o senhor faz da atuação da Inquisição no Brasil & qual o período e a região mais afetados por denúncias e processos, por exemplo, e o que estava por trás desse cenário local?

Otaviano Jr. – Destaco que estou sempre falando da Inquisição portuguesa, pois também teve Santo Ofício na Itália, na França e na Espanha. Também não nos esqueçamos que tribunais religiosos não foram exclusividades de reinos católicos; Alemanha e Inglaterra (que eram países protestantes) também tiveram seus tribunais. No caso do Brasil, estávamos atrelados a Inquisição lusitana, especificamente, ao Tribunal de Lisboa. O período mais afetado é complicado dizer: por exemplo, se, por um lado, a segunda metade do século XVIII assistiu uma diminuição dos processos e denúncias inquisitoriais, foi nesse período que mais se nomeou “espiões“ da Inquisição no Brasil. E, no caso do Ceará, também foi na segunda metade do século XVIII que tivemos mais denúncias e processos. O que quero dizer é que a força da presença da Inquisição no Brasil variou de capitania para capitania, estando atrelada ao próprio adensamento populacional das regiões, as suas importâncias econômicas e administrativas. O Ceará, por exemplo, era uma capitania periférica, e a presença da Inquisição está em sintonia com o crescimento da importância da pecuária na pauta exportadora, a criação de vilas pelo Sertão, estruturação administrativa e crescimento populacional. Mas, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Minas Gerais e o Estado do Grão-Pará e Maranhão tiveram um número significativo de denunciados e “espiões“ habilitados, Visitações e um diversificado quadro de funcionários do Santo Ofício (Comissários e Qualificadores).

OP – Qual a importância do rigor da Igreja (com seu Tribunal do Santo Ofício) para ajudar a monarquia a se fortificar politicamente, no Brasil, naqueles anos?

Otaviano Jr. – A relação não era linear entre Inquisição e monarquia, apesar do primeiro inquisidor de Portugal, o cardeal D. Henriques, ser irmão do rei português. Entretanto, devemos considerar a Inquisição como mais uma forma de marcar a ingerência do Governo Português no cotidiano do Brasil & além de outras partes do Império, não nos esqueçamos do Tribunal de Goa. Mas, isso não significava que a Colônia era um simples desdobramento dos desígnios da Metrópole. Já com o Regimento da Inquisição de 1774, o Regimento era uma espécie de Guia de Ação e de Fundamentos do Tribunal, houve uma série de mudanças atrelada a influência do marquês de Pombal. Por exemplo, os feiticeiros deixaram de ser tratados como agentes do demônio e passaram a ser pensados como “loucos“, ou “embusteiros“ que queriam enganar o povo; assim deixaram de ser queimados e passaram a ser presos em hospitais ou prisões comuns. Trabalhei com um caso de Sobral, sobre um menino voador, que a estruturação da denúncia revela tensões entre o pensamento iluminista pombalino e práticas de cura marcadas por rituais que envolviam a bebida da Jurema, ossos de cavalos mortos no campo, imagens de santo… Falar em monarquia portuguesa é muito amplo, mas acredito que, de maneiras diferentes, governantes lusitanos se apoiaram na estrutura e na força dos Tribunais do Santo Ofício & o contrário também aconteceu. Agora sua pergunta é interessante porque nos faz pensar na manipulação da legislação e de agentes judiciais por elites políticas e, ao mesmo tempo, enveredar para a relação entre práticas cotidianas e as leis. Um tema bastante atual.

OP – Em Portugal, a Inquisição pretendia “recuperar o cristão“, digamos, trazê-lo de volta para a Igreja. Em contrapartida, como o senhor mesmo revela na pesquisa que resultou no livro A Inquisição e o Sertão, no Brasil, “as denúncias não tinham grande consistência argumentativa“. As fofocas e as brigas de ocasião eram o que motivavam as denúncias no Ceará. Que perfil o senhor retrata da Inquisição no Estado?

Otaviano Jr. – Bom, não acho que o empenho era de “recuperar o cristão“, mas, sim, puni-lo e com isso evidenciar para a sociedade quais as práticas que eram aceitas e quais eram proibidas; lembra os presídios brasileiros, que mais enchem de medo os que estão fora do que “recuperam“ os que estão dentro. A consistência argumentativa era baseada em outra lógica, diferente da lógica judicial de hoje: nesses casos, o “saber por ouvir dizer“ tinha tanto peso quanto o presenciar, o mais importante & repito & era a criação de um clima de denúncia, onde a todo instante a sombra inquisitorial pairava nas situações cotidianas mais íntimas: em Recife, por ocasião da Visitação de 1593-1595, esposas denunciavam seus maridos que durante a relação sexual colocavam debaixo da cama um crucifixo, ou procuravam ter relações sexuais anais. Outros foram denunciados por dizerem, em momentos de raiva, que Maria, a mãe de Deus, não era virgem, ou que a mulher não tinha sido feita da costela de Adão e sim das fezes de um cachorro que tinha arrancado a costela da mão de Deus e comido.

OP – E qual o perfil das pessoas envolvidas nas denúncias e nos processos a partir do Ceará?
Otaviano Jr.- No Ceará, o delito mais comum era o de bigamia. Mas, também encontrei denúncias de feitiçaria, de bestialismo, de sodomia e sigilismo (padre que revelava segredos de confissão). O leque de denunciados é amplo: escravos, índios, altos funcionários, militares, padres… Mas, o número de casos levantados é, metodologicamente, limitado para traçar um perfil ou uma tendência geral.

OP – O Brasil era colônia portuguesa ao tempo da Inquisição. Em que pontos as duas versões da Inquisição & a que vinha de lá para cá e a que ia de cá para lá – se cruzam e se influenciam?

Otaviano Jr. – Na realidade, o Brasil estava sob a tutela da Inquisição do Tribunal de Lisboa. Ou seja, os processos e as nomeações de “espiões“ transcorriam lá. Agora, por exemplo, para a nomeação de “espiões“, aqui, no Brasil, o Tribunal fazia vista grossa para alguns limites dos nomeados, pois se mantivesse o rigor, simplesmente, não nomearia quase ninguém. Por outro lado, muitas vezes, pela distância entre Lisboa e o Brasil, e as distâncias internas do Brasil, muitas denúncias & eu diria que a maior parte & não eram averiguadas e nem se transformavam em processo.

OP – O desinteresse das visitações do Santo Ofício ao Brasil em relação ao Ceará foi só por causa do volume de denúncias e processos que havia aqui (numa vila ainda muito pequena naquela época) ou por algum outro motivo?

Otaviano Jr. – Salvo o Grão-Pará e Maranhão, todas as outras Visitações do Santo Ofício aconteceram em fins do século XVI e início do século XVII. Nesse período, o Ceará não tinha muita coisa além de algumas esparsas fazendas de gado e arremedos de uma estrutura administrativa. A própria condição periférica cearense, pensemos durante todo o período colonial o Ceará nunca teve uma vila com status de cidade, não instigava muito a atenção das autoridades coloniais e menos ainda metropolitanas.

OP – O que a Inquisição traz de novo para a narrativa do Ceará?

Otaviano Jr. – Estudar a Inquisição e sua presença em terras cearenses é ter acesso a novas possibilidades de análise sobre o período colonial cearense. E o é por trazer à tona elementos que compunham um cenário cotidiano marcado por tensões sociais, por diferentes práticas culturais, por famílias de elite, por escravos, por índios, por homens e mulheres… É estudar a configuração de realidades diárias que eram experimentadas, vivenciadas de maneiras diferentes por indivíduos diferentes. É falar de paixões, de enganos, de magia, de sexo, de casamento, de padres…

Acompanhe matéria publicada no Jornal O Povo em 23 de maio de 2010.
Jaqueline Aragão Cordeiro

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