Bela terra de Iracema, terra de areias brancas, de mar verde esmeralda, em que, à noite, o céu é azul como em paragem alguma do mundo. Terra minha amada, como és formosa, como és infeliz!
Quando saíste do caos, quando te individualizaste à face do planeta, estranho na comunhão do cosmos, os fardos te sangraram mártir, e a natureza te deu belezas como não as deu às tuas irmãs.
Nasceste sofrendo as inclemências de um clima vario, predestinada ao martírio, ora calcinada pelo sol, ora afogada nas águas que caem do céu. Mártires são os teus filhos desde os tempos dos caboclos nus. Representa o papel do ferreiro da maldição.
Nasceste com a sacola do mendigo pendurada no pescoço, não pela ociosidade de teus filhos, que são fortes, sóbrios, operosos, mas pela posição que te coube na formação da terra. Outros padecem maiores desgraças, torturas mais cruciantes, agonias mais lentas, mortes mais trágicas.
Os que vivem no polo, no gelo, sem flora, entre a fauna de feras, condenados ao frio eterno, a uma alimentação de azeite, são muitas vezes mais desgraçados do que os teus filhos. Os esquimós tem um tormento perene. Tem noites intermináveis, insonias de anos.
Os que habitam as regiões dos vulcões, vivendo uma vida de apreensões e receios, na iminência sempre de um cataclismo, sem uma noite de sono tranquilo, vendo o instante de serem tragados pelos terremotos ou carbonizados pelas lavas, são mais infelizes também. A morte destes é mais trágica, porém suave, porque é instantânea. Os que são enterrados vivos, estes não; os minutos antes de perderem a consciência devem ser uma angustia suprema.
A asfixia que os mata é rápida, quase instantânea; a morte de teus filhos é lenta, é a fome crônica consumindo aos poucos as reservas do organismo, depauperando-o lentamente, inanindo-o, embotando os sentidos, pervertendo as qualidades psíquicas, até chegar a inanição, o marasmo, a morte!…
Aqueles que se acabam pelos caminhos, antes de chegarem ao porto de salvação, são mais felizes, embora fiquem sem cova e sem cruz, apodrecendo nas estradas, cevando a gula dos urubus. Para que vencer a estrada da fome e cair na estrumeira de um abarracamento de retirantes?…
Cair nessa vermina humana é atolar-se em todos os vícios. A inconstância do clima faz-te madrasta de teus próprios filhos. A tua uberdade, as espessas camadas de húmus, quais as dos deltas do Nilo, esterilizam-se pela falta absoluta do orvalho do céu. Foste condenada a viver de lágrimas quando tuas irmãs vivem aos risos.
Mãe amantíssima, com um seio farto assistes de quando em quando a fome matar teus filhos. És entretanto mais feliz do que tuas irmãs, porque tua prole é forte, enrijada na tremenda luta pela vida, combatendo as inclemências da natureza. A seca uma vez por outra os exila, porém, onde chegam não se deixam morrer de nostalgia: lutam e vencem.
Foi assim que Amazônia desbravada e povoada. Arrostando ali os perigos de um solo pantanoso, as intempéries de um clima ingrato, o ataque dos selvagens e das feras, rompendo tremedaes, charnecas e urzaes, deixando os caminhos eriçados de cruzes de companheiros que ficavam mortos por toda a casta de flagelos, conseguiram cultivar e civilizar aquela grande terra.
A seca fez dos teus filhos os bandeirantes do Norte. Levaram a luz e iluminaram o entendimento de seus irmãos selvagens. Não os fizeram felizes. A felicidade é uma coisa toda relativa. Os nossos maiores índios viviam mais felizes do que nós vivemos.
A civilização aumenta-nos os gozos e a custa de lágrima de sangue. A cultura do espírito não aniquila no homem a ferocidade das besta feras. O caboclo nu era mais humano do que o homem moderno: aquele matava para comer e este mata para destruir. Os gases asfixiantes são uma prova.
Os aeroplanos, os submarinos e outros inventos do engenho humano são máquinas terríveis de destruição quando ao serviço da maldade. Os teus filhos eram selvagens, mas eram livres. A civilização é um cativeiro. Ela nos trouxe grandes males: moléstias que não tínhamos e vícios que não conhecíamos. Aperfeiçoou em nós os maus instintos.
A besta humana será sempre a mesma. O homem das cavernas é igual ao homem dos palácios. A diferença é que aquele andava nu e este anda vertido. O homem moderno mata com mais arte, furta com mais astúcia e corrompe com elegância. A flecha é mais humana do que a guilhotina.
O curare não tem o cortejo desumano e lúgubre da navalha da justiça. Mata sem os fúnebres e aterradores aparatos da morte. A vítima cai ferida no seu sensório. Morre sem conhecer as horas terribilíssimas do oratório, sem aguardar o momento de levarem-na para o matadouro.
Fonte: Scenas e Typos, Rodolpho Theophilo (1919)
Jaqueline Aragão Cordeiro